Abraçar o novo implica em riscos, sempre. E num ambiente que vem sendo constantemente alvo de inovações e disrupções como o do varejo – com uma profusão de novas tecnologias, modelos e possibilidades surgindo a todo instante –, adotar alguma ou algumas dessas novidades pode colocar a sua rede na frente da concorrência. Só que, para isso, é preciso encarar os riscos que adotar algo novo implica. Ainda que não seja algo tão novo no contexto mais amplo do varejo, pode ser algo realmente revolucionário para aquela empresa que está disposta a adotar uma nova tecnologia ou a experimentar um novo modelo de negócios.
Pautada pela velocidade dos avanços tecnológicos e as exigências de um consumidor cada vez mais no comando da jornada de compra, a Transformação Digital faz parte de uma agenda incontornável para o varejo em qualquer parte do mundo. E, apesar de tudo o que já vivemos, estamos apenas no início de uma corrida que promete ser intensa e, porque não dizer, brutal em termos das mudanças que já estão acontecendo e as decisões difíceis que precisam ser tomadas em função delas. Vivemos um cenário disruptivo. Novas tecnologias permitem que novos competidores saiam do nada e, antes que a maior parte do mercado se dê conta, já ocupem posição de destaque e incomodem quem há anos reinava no setor. Novos modelos de negócios surgem a cada momento e colocam em xeque as regras que permitiram que muitos varejistas chegassem aonde chegaram. A maior parte dessas mudanças vem na esteira da revolução nos hábitos de consumo, viabilizada pelo arsenal de tecnologia que passamos a acessar, de forma massificada, desde o final da década passada. Dispositivos móveis turbinados por internet de alta velocidade e barata deram às pessoas um poder sem igual em toda a nossa história para que cada um possa se expressar como quer, dizer o que pensa, se conectar com o mundo, aprender e, não menos importante, consumir. Fosse apenas isso, já seria um cenário extremamente transformador. Mas tem mais.
Todas essas mudanças acontecem num ritmo alucinante, no melhor estilo 50 anos em cinco. É difícil de acompanhar. E, ainda mais difícil, tomar decisões que vão permitir ao negócio seguir fazendo sentido para seus consumidores e, dessa forma, continuar a gerar valor para os seus acionistas. Empresas de varejo vivem de clientes e se os clientes querem comprar de um jeito e você insiste em vender de outro, a probabilidade do negócio não crescer é grande. Claro, é muito provável que você mantenha a sua base de consumidoras por algum tempo (que pode ser pouco). Mas, a não ser que você tenha um plano muito claro para atender um determinado tipo de público, um nicho específico e que justifique manter a sua operação nos moldes atuais, com o passar dos anos, o negócio vai minguando e perdendo a relevância.
Esse é um momento único para quem tem a missão de liderar uma empresa de varejo, seja uma gigante global seja uma rede média local – caso de muitas perfumarias brasileiras. É hora de tomar decisões importantes e fazer escolhas. O papel da liderança nas redes do varejo de beleza brasileiro será fundamental para bancar os investimentos necessários e entender que o processo vai demandar ajustes o tempo todo e rapidamente, mesmo quando eles dão certo. No ritmo com que as coisas evoluem, a todo o momento o cenário é alterado e redefinido. Por isso, os líderes do varejo de beleza brasileiro também precisam de flexibilidade para tomar decisões num ambiente de rápidas e complexas mudanças.
Nesse contexto, o papel da liderança passa a exigir novas capacidades e conhecimentos para conseguir navegar num novo mundo. E como tudo o que é novo, as decisões que precisam ser tomadas hoje envolvem riscos. E hoje, mais riscos do que antes. Isso demanda ousadia e disposição para bancar investimentos em inovações, assumindo que em meio a um ambiente tão volátil, em que as premissas de hoje talvez sejam anuladas pelas que vão vigorar daqui seis meses ou um ano, as suas decisões podem dar com burros n´água.
Um mundo disruptivo exije lideranças corajosas, que consigam mesclar a disciplina de execução operacional com a capacidade de engajar e envolver as pessoas no processo de transformação da empresa. A transformação digital é antes de tudo, uma agenda de mudança de cultura, no modo de pensar os negócios.
Quem banca o risco
Como toda transformação envolve riscos e disposição para arcar com eles, Resta saber até que ponto as lideranças do varejo no Brasil estão dispostas a correr este risco.
Para Eduardo Terra, presidente da SBVC (Sociedade Brasileira do Varejo de Consumo), um think tank de líderes do setor, ainda há muito receio de parte dos executivos brasileiros, muito apegados às suas zonas de conforto, para correr riscos. “Na verdade, a maioria das pessoas não gosta do risco. A disrupção é o que leva as pessoas a correrem o risco, porque elas se sentem ameaçadas e quanto maior a ameaça, maior é a disposição de correr risco”, lembra Terra, que também é consultor especializado em Varejo e Transformação Digital. O problema, segundo ele, é que a disposição para mudança às vezes, vem tarde. “Esse é o grande jogo da disrupção. Você não esperar o tsunami chegar pra poder fugir dele, você precisa se antecipar. E são poucos os que fazem isso”, reforça Terra, para quem a maioria das empresas não tem disposição pra testar coisas novas, o que torna a disrupção um jogo pra poucos, enquanto todos os outros se mantém dentro de um modelo conhecido que funciona hoje, mas não vai funcionar amanhã. “Acho que estamos num momento de ruptura na formação de uma cultura de varejo, que ainda acredita que incorporar tecnologia já é um sinal de inovação. Para que o mundo digital crie valor para o consumidor é preciso que mude a mentalidade do profissional que a utiliza, alguém que saiba pensar com a velocidade que os tempos exigem, seja antenado, perceptivo, criativo e que saiba vestir a pele do consumidor”, diz Fátima Jinnyat, professora dos módulos de Liderança Contemporânea, Gestão da Mudança, Criatividade e Inovação dos cursos de MBA e Pós-Graduação da FIA/USP.
Se a mudança deve ser cultural, com um novo mindset para os líderes, quando é que aqueles que tomam as decisões nas empresas de varejo devem alcançar esse ponto? Para Jinnyat, ainda não estamos, mas no médio prazo chegaremos lá. “Quem determinará a aceleração da mudança será o próprio consumidor com suas mudanças de comportamento”, diz a professora, que também é consultora nas áreas de Liderança e Treinamento. O problema é que esse horizonte talvez precise ser acelerado frente a realidade dos novos tempos. “A questão é que hoje, não temos mais tempo para planejamentos estratégicos longos de dez anos, como até bem pouco tempo. Tudo é muito rápido. O líder vai precisar correr mais riscos e aceitar os erros”, acredita Bianca Nesi, sócia da Nesi Consulting, especializada em treinamento para lideranças.
Questão de idade
Tendo em vista o apego de muitas lideranças atuais aos formatos conservadores de se fazer negócio, pelo menos no Brasil, também é de se perguntar se a transformação digital não seria uma questão geracional? “Talvez sim. O empreendedor mais novo tem menos a perder. Este é o primeiro motivo pelo qual as startups e os empreendedores mais jovens estão dispostos a correr mais riscos. Depois, eles têm menos medos e menos crenças”, diz Eduardo Terra, mas ele lembra que existem exceções dos dois lados. “Você tem pessoas mais velhas que querem sempre mudar, tomar atitudes mais ousadas e correr riscos, assim com tem muita gente jovem que quer algo mais conservador. Mas a regra, normalmente, é esta”, emenda.
Fátima Jinnyat acredita que será preciso um novo treinamento para os líderes, que integre a razão e a sensibilidade, o pragmatismo do resultado, mas também a criatividade para gerar soluções para problemas inesperados. “Um treinamento que desenvolva tanto o lado techie como o lado fuzzy”, opina. Sem isso, corre-se o risco de entender que basta mensurar os dados gerados que está tudo resolvido, esquecendo que os dados devem ser usados para servir melhor às relações humanas “Tenho ouvido queixas de alunos desta área, preocupados com a mentalidade especialmente utilitária na construção de uma inteligência de mercado”, conta a professora.
A liderança nas perfumarias
Dentro do canal especializado em beleza, as lideranças das maiores redes do setor, queiram ou não, também estão no meio do turbilhão da transformação digital. E, os mais conscientes do que está acontecendo, estão em busca de informação e conhecimento para lidar com elas e colocar suas redes no caminho para que elas possam seguir crescendo de forma sustentável. “Eu enxergo o movimento do setor de perfumarias, com os empresários e empresárias buscando informação, entendimento sobre o que acontece. Isso é muito positivo”, acredita Eduardo Terra. “Agora, quantos deles estão se sensibilizando para introduzir mudanças efetivas, ainda é cedo para dizer”, emenda o especialista em varejo e transformação digital. Para ele, são muitas mudanças chegando ao mercado, incluindo o avanço da Amazon – a grande representante dessa transformação digital e, talvez, uma ameaça maior – sobre o setor de beleza lá fora e aqui no Brasil. As mudanças que estão acontecendo trazem problemas e novos desafios, claro. Mas, como o próprio Terra faz questão de frisar, com elas vêm muitas oportunidades também. “É dessa maneira que a gente deveria olhar a mudança e a transformação”, reforça Terra.
Apesar de o varejo de beleza brasileiro estar atrasado em comparação a países mais evoluídos (nos quais, existe uma preponderância de varejistas que operam no segmento de distribuição seletiva) no que diz respeito à maturidade digital, já é possível encontrar movimentações de lideranças do canal perfumaria nesse sentido. Não se trata de olhar só para grandes investimentos. São casos pontuais e pequenas iniciativas em várias empresas como investimentos em CRM, os sistemas que permitem fazer o gerenciamento de clientes, que está sendo adotado por diversos varejistas do setor. Assim como quase todas as principais bandeiras contam com alguma iniciativa de venda online. Além disso, Terra vê os maiores do setor se movimentando em termos de digitalização das lojas físicas, com iniciativas que vão desde colocar câmeras para contar o fluxo de pessoas até se tornar mais omnichannel. “De novo, não vamos encontrar “o grande caso”, como é o caso do Magazine Luiza – que também é um player importante pra cosmético (a empresa controla a Época Cosméticos, e-commerce especializado em beleza). Mas vamos encontrar iniciativas pontuais crescentes em todos os players”, garante.
Tornando vantagem a adversidade
É obvio que tudo o que foi dito até aqui, querendo ou não, está atrelado a uma agenda econômica que, principalmente no Brasil, nem sempre colabora. 2020 era um ano que carregava algum grau de expectativa em relação a uma melhoria no processo de recuperação econômica. Se o avanço das semanas em janeiro e fevereiro já davam a entender que a recuperação deste ano não seria “favas contadas”, condições inesperadas tendem a atrapalhar um pouco a situação. Mas a pandemia de coronavirus, extrapolou essa condição, colocando o mundo e a economia em quarentena e, em particular no caso das perfumarias, não terá venda de álcool em gel e sabonete capaz de suplantar o impacto sobre os negócios. Independentemente disso, e não sendo cínico em relação à tragédia que vivemos, em algum momento tudo irá voltar e será preciso estar pronto. É em momentos como esse que as lideranças são mais importantes do que nunca. “Um líder que faça mais perguntas aos liderados, que os faça pensar por si, buscando acordos que levem a equipe para frente. Que suporte o impacto das pressões inerentes ao posto, admitindo sua vulnerabilidade, sabendo conquistar o apoio de sua equipe quando precisar. E vai precisar”, diz Fátima Jinnyat. Líderes do setor precisarão ter frieza para preservar a saúde dos seus funcionários e clientes, tomando decisões difíceis e de impacto imediato para os negócios, ao mesmo tempo em que precisarão buscar alternativas para seguir operando num momento onde a única certeza é a incerteza.
Ironicamente, nesse momento, a vivência e a capacidade de líderes mais velhos, forjados no dia a dia de operações de varejo e com experiência de negócios num ambiente incessante de incertezas no cenário econômico (quem viveu nos anos 1980 e 1990, sabe muito bem disso). Talvez seja exatamente o talento de nossos melhores líderes para reverter adversidades em oportunidades que, uma vez somado às vantagens tecnológicas, venha a nos colocar em pé de igualdade com os gigantes do varejo internacional e, quem sabe, superar nossas melhores expectativas para o futuro que já está ai.